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Ensaios / Críticas

[Estudos Pasolinianos - Depto FTC da EBA]

01/23/2004

SOBRE MENINOS E LOBOS - DISCURSOS HERÉTICOS 11


Elogiado por Walter Salles Jr., indicado ao Oscar e ao Globo de Ouro e já premiado por diversas associações de críticos nos EUA, Sobre meninos e lobos (Mystic River, 2003), de Clint Eastwood, baseado no best-seller policial Mystic River, de Dennis Lehane, não deveria merecer nenhum prêmio, já que dissemina uma visão fascista do mundo. Para Daniel Piza, "a historia ganha grandeza nos subtemas sugeridos pelos diálogos (a relação entre genética e ambiente, a confissão como expiação, etc) nos sobrevôos do rio pela câmera, em tudo o que os atores dizem sem falar... Ideologias à parte, a hipocrisia dos personagens nas cenas finais chocou alguns espectadores e, de fato, não fica claro se a atitude de Sean é coerente com o que soubemos dele até então. Mas raras vezes a narrativa do cinema fluiu para tais limites, lá onde as ironias do destino passam para todos nós" (O Estado de S. Paulo, 14/12/2003). Bem, os críticos que operam hoje na imprensa conseguem realizar essa proeza: separar a ideologia da arte. Quanto a mim, não consigo "limpar" um filme de seu conteúdo para "apreciar" sua forma, e temo que aqueles que adotam essa atitude de "não querer ver" um filme tal como ele se apresenta na tela, filtrando-o na mente para "devolvê-lo" ao público expurgado numa resenha elogiosa só contribua para tornar a mensagem do filme mais eficiente - seja ela qual for.
Sobre meninos e lobos pinta o retrato de três homens - Jimmy Markun (Sean Pean), Dave Boyle (Tim Robbins) e Sean Devine (Kevin Bacon) - marcados por um caso escabroso ocorrido em suas infâncias: nos anos 1960, vivendo num bairro irlandês da periferia de Boston, eles resolvem, durante uma brincadeira, escrever seus nomes numa calçada recém-cimentada; são surpreendidos por um homem que se diz da polícia e que leva um deles para dentro da "viatura"; trata-se, na verdade, de um pedófilo que irá, junto com um parceiro, passar dias violentando o garoto seqüestrado.
O menino abusado cresce traumatizado pela violência sofrida e os dois outros por nada terem feito para impedir o crime. Vinte e cinco anos mais tarde, os três, vivendo afastados, reencontram-se quando um assassinato abala o bairro em que cresceram na cidade: a filha de Jimmy Markun aparece morta de forma brutal. O caso é investigado por dois detetives: Whitey Powers (Laurence Fishburne) e o ex-amigo do pai da vítima, Sean Devine. Em suas buscas, eles chegam a dois suspeitos: o namorado secreto da garota assassinada, que planejava fugir com ela para casar-se em outra cidade, filho de um homem que (descobriremos) fora morto por Markun; e o traumatizado Boyle que, agora, é um homem aparentemente normal (casado, pai de um menino), mas que começa a comportar-se de forma estranha, confessando à esposa ter matado um pedófilo na noite mesma em que a garota fora assassinada. As investigações prosseguem e, no final, descobrimos que a garota fora morta pelos dois irmãos adolescentes do namorado, quase por acidente, quando brincavam - com certa maldade - com uma arma; mas como a esposa de Boyle passara a desconfiar da sanidade do marido, ela o "entregou" ao violento Markun, que acaba por sacrificá-lo na mesma noite, saciando sua sede de vingança. Quando Devine revela a Markun, no dia seguinte ao "sacrifício" de Boyle, que os assassinos foram encontrados, aquele praticamente confessa ter matado Boyle. O policial Devine não reage, embora tenha entendido o que aconteceu. Tudo o que faz é relembrar, quase nostalgicamente, o velho trauma da tarde em que o menino Boyle foi levado pelos dois "lobos". Mais tarde, durante uma parada festiva, Devine, ignorando o estado de culpa e desespero de Celeste (a ótima Marcia Gay Harden), a viúva de Boyle, acena para Markun, cuja esposa Annabeth (Laura Linney), que passa o filme inteiro apagada, desabrocha pouco antes do final num discurso político-erótico digno de Lady Macbeth, orgulhando-se de ter um marido assassino, elevando o moral dele ao dizer-lhe que havia cumprido um dever de chefe de família, protegendo as filhas, sendo ele um "rei", alguém que chegará ao poder na cidade.
Nessa seqüência final, o filme revela a que veio: não se trata de denunciar um drama humano, mas de, depois de associar o catolicismo à pedofilia, sugerir a eliminação não apenas dos pedófilos (confundidos com os homossexuais) como também a dos meninos estuprados por tarados (ou os jovens seduzidos por gays). Se as abordagens anteriores de Hollywood sobre a pedofilia, como Sleepers - A vingança adormecida (1996), de Barry Levinson; ou Felicidade (Happiness, 1998), de Todd Solondz, já eram bastante nocivas, aqui Clint Eastwood vai além da defesa da "justiça pelas próprias mãos" e da "incorreção política", justificando, além do extermínio dos pedófilos, o das vítimas traumatizadas, já que, uma vez "conspurcadas", elas não são mais passíveis de "recuperação": algo de ruim permanece dentro delas. Como o trauma é sempre revivido, elas não conseguem comportar-se de maneira normal, resvalando para o crime. Assim, o "rei" do pedaço não precisa sentir-se culpado por eliminar o amigo "doente" - nem a Justiça irá alcançá-lo. O policial Devine não levará Markun às barras do tribunal por ter matado Boyle que, vitimado na infância, agora se dedica a matar pedófilos (ou homossexuais). Os dois crimes podem ficar livres de investigação. Para forjar essa mensagem, o diretor não hesitou em falsificar a realidade humana que ele próprio foi construindo ao longo da trama: assim, por uma necessidade ideológica e não por uma necessidade narrativa, ele suprime o personagem, até então destacado, do policial negro Whitey Powers: como esse detetive sabia da relação de amizade entre Devine e Markun, com o desaparecimento de Boyle e a descoberta do cadáver do pedófilo, ele, que era honesto e não tinha relações de amizade com os envolvidos, não hesitaria em prender Markun. Assim, para que esse personagem não pudesse interferir apenas por ser coerente na conclusão do filme - que "absolve" Markun -, os roteiristas e o diretor simplesmente suprimiram o importante coadjuvante das investigações e da própria trama (onde ele funcionava como a "consciência" de Devine) : ele desaparece do filme sem deixar traços. Outra característica de propaganda no filme é a associação negativa entre o crucifixo e a pedofilia: o diretor lança sobre um dos pedófilos a suspeita de ser "cristão", alguém que usa ostensivamente um anel onde sobressai uma cruz, e depois também uma corrente com uma cruz de ouro, que brilha exatamente no momento em que ele se prepara para violentar o garoto - sugerindo uma perversidade inata naqueles que usam crucifixos. A alusão aos "padres pedófilos" é tanto mais grave quanto o filme não deixa claro se esse personagem é um padre, ou alguém que usa os símbolos sagrados do cristianismo como um ingrediente a mais em suas fantasias sexuais desviadas. Assim, tão grave quanto a sugestão de que os pedófilos e suas vítimas podem ser exterminados pois os que assim fazem não serão condenados pela Justiça, é a permissão que o diretor se concede de "demonizar" um símbolo sagrado (no caso, a cruz): essas permissões têm, como se viu no cinema nazista em relação à estrela de Davi, graves conseqüências, pois acarretam, cedo ou tarde, a perseguição aos grupos sociais estigmatizados. Os católicos estão na mira de Hollywood, e têm sido depreciados em diversos filmes recentes. Não se confunda essa depreciação com a crítica política e histórica fundamentada, como a de Amém (Amen, 2002), de Costa Gavras: trata-se de uma propaganda de fundo fascista visando os valores do cristianismo, que coincidem com os do judaísmo. E como a História já provou, o ataque aos valores estabelecidos pela religião judaica, herdados pela religião cristã, é o primeiro passo para o estabelecimento de sistemas totalitários.


Luiz Nazario - luiz.nazario@terra.com.br



01/23/2004 a 02/07/2004. Este Mural é de responsabilidade de:
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